QUANDO AS PALAVRAS SE DESFAZEM: O DESAFIO DA AFASIA PROGRESSIVA PRIMÁRIA E A URGÊNCIA DA REABILITAÇÃO
2 agosto, 2025
Ela começa com pequenas hesitações. A palavra certa escapa, a frase se arrasta, o telefone toca e o nome da pessoa conhecida não vem. Para alguns, é apenas o sinal de um dia cansativo. Mas para outros, é o prenúncio de algo mais devastador: a Afasia Progressiva Primária (APP).
A APP é uma forma rara e insidiosa de demência, que atinge o coração da nossa capacidade de nos expressarmos: a linguagem. Diferente da Doença de Alzheimer, que compromete primeiro a memória, a APP preserva inicialmente o restante das funções cognitivas, enquanto a linguagem—fala, compreensão, leitura e escrita—começa a se deteriorar progressivamente.
É como assistir uma ponte ruindo aos poucos, enquanto ainda estamos atravessando por ela. A pessoa continua lúcida, mas perde gradualmente o principal canal de comunicação com o mundo.
🔷Uma condição com muitas vozes
Existem subtipos distintos de APP, cada um com uma assinatura neurológica própria. Na variante não-fluente/agramática, a fala se torna lenta, truncada e gramaticalmente incorreta. A apraxia de fala—dificuldade em planejar os movimentos da fala—pode agravar a produção verbal, fazendo com que simples palavras se tornem labirintos fonológicos.
A variante semântica, por outro lado, mantém a fluência, mas esvazia o significado. As palavras vão perdendo cor e forma, a pessoa fala, mas não entende.
Já na forma logopênica, o discurso é interrompido por falhas de acesso lexical e dificuldades em repetir frases. Subtipos mistos e formas léxicas também foram descritas, compondo um espectro mais amplo e complexo do que se imaginava.
🔷O papel dos profissionais de saúde: reabilitar é urgente
Apesar de sua natureza degenerativa, a APP não é um diagnóstico sem saída. Um número crescente de pesquisas aponta para o papel fundamental da neurorreabilitação na preservação da funcionalidade e da qualidade de vida.
Estudos recentes com estimulação transcraniana por corrente contínua (ETCC) mostraram melhora nos desfechos linguísticos, mesmo em fases avançadas da doença (Cotelli et al., 2016; Tsapkini et al., 2018). A terapia fonoaudiológica, adaptada ao subtipo da APP, pode atrasar significativamente o declínio da linguagem, favorecendo a comunicação funcional e a autonomia.
Não existe um modelo único, mas há uma gama de estratégias baseadas em evidência: desde o uso de aplicativos para nomeação, até exercícios fonológicos focados, tarefas de construção frasal e leitura oral estruturada.
Além disso, iniciativas como grupos terapêuticos para pacientes e cuidadores têm mostrado efeitos positivos na autoestima, participação social e manejo do luto pela perda da linguagem (Douglas, 2014; Jokel et al., 2017).
🔷Reabilitar é também planejar
Profissionais de saúde mental têm papel fundamental no manejo psicossocial da APP. A psicoeducação é um dos pilares do tratamento, auxiliando pacientes e famílias a entenderem o curso da doença, planejarem o futuro e lidarem com perdas emocionais.
Terapias como a TCC, o EMDR e técnicas de relaxamento complementam os programas focados em linguagem, atuando no impacto psicológico da condição. Não podemos ignorar a dor psíquica de alguém que está consciente do que está perdendo, dia após dia.
🔷A urgência da ação
A afasia progressiva primária não é apenas um problema neurológico; é uma emergência comunicacional. E, enquanto a ciência ainda busca respostas definitivas para a causa e cura, os profissionais de saúde têm uma missão incontornável: proteger o que ainda pode ser salvo.
A neurorreabilitação, quando iniciada precocemente e conduzida com base em evidências, não é um luxo — é uma linha de vida. Cabe a neurologistas, fonoaudiólogos, psicólogos, terapeutas ocupacionais e cuidadores compreenderem essa urgência. Reabilitar não é reverter o tempo, mas oferecer estrutura para que, mesmo com a ponte em ruínas, ainda seja possível atravessá-la com dignidade.
🔷Fontes:
Cotelli, M., Manenti, R., Paternicò, D., Cosseddu, M., Brambilla, M., Petesi, M., Premi, E., Gasparotti, R., Zanetti, O., Padovani, A., Borroni, B., 2016. Grey Matter Density Predicts the Improvement of Naming Abilities After tDCS Intervention in Agrammatic Variant of Primary Progressive Aphasia. Brain Topogr. 29, 738–51. doi:10.1007/s10548-016-0494-2
Cotelli, M., Manenti, R., Petesi, M., Brambilla, M., Cosseddu, M., Zanetti, O., Miniussi, C., Padovani, A., Borroni, B., 2014. Treatment of primary progressive aphasias by transcranial direct current stimulation combined with language training. J. Alzheimers. Dis. 39, 799–808. doi:10.3233/JAD-131427
Douglas, J.T., 2014. Adaptation to Early-Stage Nonfluent/Agrammatic Variant Primary Progressive Aphasia: A First-Person Account. Am. J. Alzheimers. Dis. Other Demen. 29, 289–92. doi:10.1177/1533317514523669
Jokel, R., Meltzer, J., D R, J., D M, L., J C, J., A N, E., D T, C., 2017. Group intervention for individuals with primary progressive aphasia and their spouses: Who comes first? J. Commun. Disord. 66, 51–64. doi:10.1016/j.jcomdis.2017.04.002
Tsapkini, K., Frangakis, C., Gomez, Y., Davis, C., Hillis, A.E., n.d. Augmentation of spelling therapy with transcranial direct current stimulation in primary progressive aphasia: Preliminary results and challenges. Aphasiology 28, 1112–1130. doi:10.1080/02687038.2014.930410
Tsapkini, K., Webster, K.T., Ficek, B.N., Desmond, J.E., Onyike, C.U., Rapp, B., Frangakis, C.E., Hillis, A.E., 2018. Electrical brain stimulation in different variants of primary progressive aphasia: A randomized clinical trial. Alzheimer’s Dement. (New York, N. Y.) 4, 461–472. doi:10.1016/j.trci.2018.08.002